Reunião de 11/2/2014

“Até onde vai a violência?”

“A ética como resposta”


Dados do 7º Anuário Brasileiro de Segurança Pública não deixam dúvidas: a violência permanece como uma das principais patologias sociais do Brasil. Em 2012, foram mais de 50 mil homicídios no País – 50.108, para ser mais exato –, ante 46.177 ocorrências em 2011. Esse recrudescimento implicou a subida da taxa de mortes violentas para 25,8 por 100 mil habitantes, contra 24/100 mil no ano anterior. Para traçar um paralelo, de 26 de janeiro de 2011 até o fim do ano passado, mais de 130 mil pessoas morreram durante os sangrentos confrontos na Síria (média de 43,3 mil por ano), de acordo com ONG Observatório Sírio dos Direitos Humanos. Considerando apenas os civis, as baixas ficam em 46.266 (15,4 mil/ano). Há, no entanto, uma significativa diferença entre o Brasil e a Síria: eles estão em guerra civil; nós, não.

Ainda segundo o anuário, em números relativos, o Estado de São Paulo é o segundo em que menos assassinatos foram cometidos no Brasil em 2012, embora, em comparação com 2011, o número de homicídios tenha saltado de 4.193 para 4.936 (12,4 casos a cada 100 mil habitantes). Em termos de mortes violentas – desígnio sob o qual estão, além dos homicídios, a lesão seguida de morte e os latrocínios –, foram 5.180 ocorrências. A título de comparação, na Bahia, esses números alcançaram a casa de 5.764 mortes. Detalhe: São Paulo tem mais de 42 milhões de habitantes; a Bahia, pouco mais de 15 milhões.

Embora a realidade paulista seja confortável frente à de outros estados, é inegável que as estatísticas não se refletem no cotidiano das pessoas. “Quem já enfrentou algum tipo de violência sabe bem que não há nada mais humilhante e aterrorizante do que ficar sob a mira de uma arma, ouvindo ameaças, e sabendo que a qualquer momento aquele marginal, muitas vezes sob o efeito de drogas, pode puxar o gatilho. Quem teve a sorte de nunca ter enfrentado uma situação como essa também vive sob tensão. A qualquer momento, o cidadão ou alguém de sua família pode ser a próxima vítima”, disse Claudio Bernardes, presidente do Secovi-SP, na primeira reunião do ano do NAT (Núcleo de Altos Temas) de 2014, ocasião na qual foram recebidos o professor e filósofo Denis Lerrer Rosenfield e o ex-secretário de Justiça e de Segurança Pública de São Paulo Antônio Carlos Mariz de Oliveira, que também é advogado criminalista.

A reflexão sobre os limites da violência (há limites para ela?) e como utilizar os padrões éticos para mudar o comportamento social foram os desafios lançados aos palestrantes. “A missão é quase impossível. Rapidamente, temos de revisitar o conceito da ética e contextualizá-lo no âmbito das discussões. Afinal, é possível relativizar a moral? Por que, no Brasil, temos a ética do partido Y, a do partido Z? Por que temos a ética do José e a da Maria? Quais são os impactos dessa relativização no cenário institucional brasileiro? Podemos dizer que a falta de ética é também responsável pelo avanço da violência na vida urbana e suas outras formas de manifestação? É possível resgatar a ética em sua essência? Como fazer isso?”, provocou Romeu Chap Chap, coordenador do NAT.

Denis Lerrer Rosenfield

Rosenfield iniciou sua apresentação passeando pelo campo teórico. “Quando falamos de ética, estamos sempre falando de questões passíveis de serem universalizadas”. A filosofia tem dois grandes pensadores que, em seus escritos, fazem um arrazoado sobre essa questão. Kant dizia que, para julgar uma ação, é preciso avaliar se ela foi válida para toda a coletividade. “Mas qual o padrão que nos permite julgar, quais são os critérios que nos permitem dizer que uma lei ou ação são justas para todos?”, indagou o professor.

Ele avalia que, em nome de um certo progresso, entramos na era do multiculturalismo, o qual pressupõe que todos os costumes e culturas são equivalentes e têm igual valor em suas particularidades. Mas, conforme pondera Rosenfield, se essa máxima for seguida à risca, não será mais possível diferenciar uma tirania de uma democracia, pois ambos os expedientes nada mais seriam que características de um povo, de uma cultura, e, portanto, teriam valores equiparados. Por esse parâmetro, tanto uma ditadura quanto uma democracia poderiam ser universalizadas.

“Peguem a questão de algumas tribos indígenas do Norte do Brasil. Para essas populações, infanticídio é algo absolutamente normal”, exemplificou o palestrante, emendando que muitas coisas são toleradas em nome do multiculturalismo. Mais: em nome dessa “tolerância”, a moral também passa a ser relativizada, pois a prática de asfixia de recém-nascidos por índios pode ser “aceita” porque se trata de uma prática justificada pela “cultura”. Fosse um exógeno do meio indígena a matar uma criança, tal tolerância não o contemplaria. O episódio de índios tenharins que assassinaram três homens em represália à morte de congêneres, no Amazonas, não passou incólume por Rosenfield. Em sua análise, a impunidade fomenta esse tipo de desastre, pois “índio pode matar, porque não acontece nada”. Especificamente nesse ocorrido, a Polícia Federal prendeu cinco suspeitos de envolvimento nos crimes.

Outro ponto abordado por Denis foram os exemplos de conduta ética. Sociedades se caracterizam por comportamentos repetitivos e imitativos. No Brasil, os governantes dão os piores exemplos à população. “Se um senador ou um ministro roubam, como vamos julgar o ladrão de galinhas?”, indagou o palestrante. “Como é que a sociedade brasileira vai viver com padrões éticos que coíbam inclusive a violência se a ética não é padrão de comportamento de quem deveria dar o exemplo?”. Para ele, a ética acabou sendo relativizada também pelo comportamento. E, nesse cenário, o STF, na avaliação do palestrante, deu uma enorme contribuição ao País no julgamento do Mensalão, ao demonstrar que a lei vale a todos. “Pela primeira vez, ministro foi para a cadeia. Isso, há um tempo, era impensável”.

Manifestações de junho – Legítimas e pejadas de demandas genuínas (mais saúde, educação, segurança…), as manifestações de junho de 2013 foram sequestradas por movimentos barulhentos e arruaceiros, que disseminaram a violência como método de reivindicação. Rosenfield atribui essa nódoa ao sequestro das manifestações por movimentos de esquerda e de extrema esquerda. Como a impunidade prevaleceu, perduraram as depredações, a tomada de vias públicas de maneira indiscriminada e os confrontos com a polícia. “Minha opinião é muito clara em relação a isso: a violência precisa ser coibida”, asseverou. No mesmo dia do NAT, o cinegrafista da TV Bandeirantes do Rio de Janeiro, Santiago Andrade, teve morte cerebral, vítima de um rojão disparado contra ele em uma manifestação. “[A agressão ao próximo] se tornou algo banal. Pega e atira um rojão no cara. Como assim?”, encetou.

Esse tipo de comportamento, segundo Rosenfield, seria “moralmente aceitável”, porque praticados por gente de “extração social mais baixa” – linha conceitual obscurecida por um turbilhão de equívocos, segundo ele, pois tal pensamento permitiria concluir que pobreza e criminalidade estariam intrinsecamente unidos.

Antônio Cláudio Mariz de Oliveira

Mariz concordou com as ponderações de Rosenfield quanto à impunidade ser fator gerador de crimes. Mas não apenas ela. “O fato de que historicamente nós só clamamos por punição tem, no meu entender, levado ao aumento da violência e da criminalidade”, afirmou. Para ele, a ênfase na punição tem prejudicado a adoção de medidas destinadas a evitar a ocorrência de crimes. “Em relação a esse fenômeno [do aumento da criminalidade], há de haver combate para suas causas. Então não entendam que a impunidade posse grassar. Há de se punir, sim; mas punir bem, certo e com o objetivo de ressocialização”, continuou.

Segundo Mariz, a sociedade tem se preocupado em direcionar investimentos apenas para as cadeias, mas o ideal seria que o foco se voltasse para a liberdade. “Hoje, governadores se ufanam de construírem cadeias”, disse, questionando se a produção de escolas ou hospitais não seria mais patriótico. O antes (causas do crime) e o depois (egressos) estariam relegados a segundo plano no bojo das ações governamentais, de acordo com seu ponto de vista.

“O crime é um ente social e humano, portanto, ele pertence a todos nós. Há uma enganosa sensação de que o crime está lá e nós aqui. O crime tem suas causas, muitas delas geradas no ventre da sociedade, e pode abraçar a nós todos”, prosseguiu o advogado. Ninguém em sã consciência é capaz de dizer que jamais cometerá um crime, tampouco que nunca será vítima de falsas acusações ou de condenação injusta. “E, para isso, precisaremos ter todo esse aparato que chamamos de sistema penal também voltadopara nós, homens e mulheres inocentes”.

Se o crime é um ente social, então precisa ser assumido pela sociedade. Mariz sustentou que cabe a ela e ao governo, juntos, agirem para coibi-lo. “A sociedade aqui representada, pelo mundo empresarial imobiliário, já está mobilizada”, disse. Também mencionou os diversos movimentos e trabalhos existentes pelo País com o propósito de reinserir egressos, embora nem sempre tenha sido assim. “Essa omissão histórica da sociedade se reflete no crescimento do crime. Um exemplo muito claro é o do menor carente, que se torna trombadinha e, mais tarde, vira o bandido velho. Essa omissão com o menor é de 50 anos. O máximo que se fez com o menor aqui em São Paulo foi colocá-lo dentro de ônibus e mandá-lo para Camanducaia”. E emendou: “No Rio de Janeiro, foram mais eficazes e eficientes. Mataram na porta da Candelária”, provocou. Esse tratamento dispensado ao menor de idade, no entender de Mariz, tem sido um agravante da criminalidade.

Nesse cenário, clamar por leis mais rigorosas é o mesmo que “enxugar gelo”. Na concepção de Mariz, estamos em retrocesso nas matérias penal e social. E voltou a tonificar seu posicionamento: “Construímos cadeias, mas não creches nem abrigos para menores”.

A violência sem causa, gratuita, também foi focalizada pelo advogado, que disse entender a fereza de um assaltante, embora não a aplauda (“ele rouba, pratica o latrocínio”). Para ele, a sociedade convive, hoje, com a banalização do mal, da agressão gratuita, oriunda da perda de valores profundos (“o tecido ético está esgarçado?, falta religiosidade?, os preceitos ético e morais foram embora?”). Mencionou como exemplo o caso do torcedor que teve sua cabeça pisoteada numa partida de futebol entre Vasco e Atlético Paranaense, em dezembro do ano passado. “Diante dessa violência incompreensível, estamos de novo clamando por cadeia. Repito: que se puna exemplarmente, mas que se discuta as razões disso”.

Mariz afirmou, ainda, que a televisão, com seu impressionante poder de aculturamento, presta um desserviço à sociedade. “Não porque mostra cenas de sexo ou de dois homossexuais se beijando, mas sim porque mostra que as frustrações da vida podem ser resolvidas à bala, porque o apetite sexual deve superar outros, e por aí afora. Não vejo uma televisão edificante”, disse. Afirmou que a TV não deve ser vista apenas da perspectiva comercial: ela também precisa incorporar sua função social, de servir à sociedade, espargindo cultura e educação. “No que tange à violência, a televisão transformou o crime em espetáculo de grande venda. Ela não extrai lições do crime, nem discute suas circunstâncias […] Muitas vezes, ela mesma elege um acusado, um culpado; e ‘ai’ do Poder Judiciário se não o prender”, adicionou. Disse que, muitas vezes, suspeitos são execrados em jornais televisivos, os quais não compreendem, segundo Mariz, que o tempo de um processo na Justiça não é o mesmo da imprensa. Para ele, a mídia vislumbra apenas prender pessoas, jogá-las num sistema prisional de condições precárias. Lembrou que o Brasil é o quarto país que mais prende pessoas no mundo, totalizando uma população carcerária de 570 mil detentos, sendo que, destes, mais de 200 mil estão apenas aguardando julgamento – ou seja, em tese, ainda são inocentes.

Mariz encerrou com uma reflexão sobre as raízes do crime. “Pobreza não é causa de crime; pode ser fator desencadeador, mas não a causa”, disse. Também fez menção ao desgaste do tecido ético, perpetrado por delitos de todas as naturezas praticados por todas as classes sociais. “Criamos, com esse jeitinho brasileiro, a cultura da desobediência”, afirmou, para em seguida chancelar: “Precisamos de um choque civilizatório muito forte”.

Leandro Vieira
Assessoria de Comunicação/Secovi-SP

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