Reunião de 25/7/2008

“A (in)Segurança Jurídica”

O presidente da OAB-SP é reconhecido por suas sempre combativas atitudes. Não é homem de meias palavras quando o assunto é fazer cumprir as leis, a Constituição e, principalmente, o estado de direito democrático.
Não seria, portanto, outro o tom com que Luiz Flávio Borges D’Urso analisou a questão da (in) segurança jurídica que grassa no País, fazendo ver aos que participaram da última reunião do NAT (dia 25/7, na sede do Secovi-SP), que a solução desse grave problema vai exigir muito, e de todos.

Abertura
Em suas saudações, Romeu Chap Chap, presidente do Conselho Consultivo do Secovi-SP e criador do NAT, apresentou os novos convidados permanentes que passam a integrar o núcleo: José Maria Chapina Alcazar, presidente do Sescon-SP (Sindicato das Empresas de Serviços Contábeis e das Empresas de Assessoramento, Perícias, Informações e Pesquisas no Estado de São Paulo); Paulo Nathanael Pereira de Souza, presidente do Conselho Diretor do CIEE Nacional e do Conselho de Administração do CIEE/SP; e João Dória Júnior, presidente do grupo Dória Associados e do Lide (Grupo de Líderes Empresariais). Também anunciou encontros já programados: dia 6/8 – café da manhã com Jorge Gerdau; e 03/11 – encontro com Roberto Rodrigues, ex-ministro da Agricultura.

Após agradecer a presença do Flávio D’Urso, ressaltou que o tema do dia remete à necessidade de haver o mínimo de previsibilidade para se viver no País.
Chap Chap foi complementado por Ricardo Yazbek, presidente da Fiabci/Brasil e diretor conselheiro do Secovi-SP (na ocasião, representando o presidente do Sindicato, João Crestana). Conforme Yazbek, a insegurança jurídica afeta a todos os setores produtivos, porém, prejudica de forma ainda mais dura os segmentos de longo prazo. “Mudança nas regras do jogo no meio do jogo é mortal para o mercado imobiliário, marcado por longo ciclo operacional”, disse.

A Palestra
“A insegurança jurídica tem várias interpretações. Mas a principal base a considerar é a Constituição. Nela, os legisladores buscaram brindar todos os tipos de interesses. Acabaram colocando no papel algo inviável na prática, dadas as sobreposições que se originaram”, considerou Flávio D’Urso.
Segundo ele, o bom funcionamento do Brasil deveria repousar na divisão tripartite de atribuições e competências: Executivo, Legislativo e Judiciário. “Se cada um ficasse nos limites de suas atribuições seria ótimo. Porém, na prática o que há é um avanço de um poder sobre o outro”. Segundo ele, o temos hoje:

  • O Executivo legisla – via Medidas Provisórias, que deveriam ser empregadas apenas em circunstâncias emergenciais (quando, em face de urgência, não é possível esperar o tempo para o Legislativo analisar e debater com a sociedade). “O que temos hoje é uma inversão. O chefe do Executivo fez da MP um instrumento para legislar. Surge, então, uma regra que vale para todos, imediatamente. Daí, a matéria vai para o Legislativo e para o Ministério Público, os quais podem invalidar/derrubar a MP. Aí, a vida de todos, que mudou com a nova regra, volta ao status quo. Uma baderna que se dá simplesmente pela desconsideração ao que diz a Constituição Federal sobre as MPs.”
  • O Legislativo investiga – via CPIs, essa instância invade as atribuições do Judiciário (MP, Polícia). “Assume, assim, um poder semelhante ao de juiz de Direito. Há usos e abusos. As CPIs viram palco para candidatos viabilizarem reeleição. Não raro, a insuficiente coleta de dados impede que se dê andamento no palco correto, que é o Judiciário. Sem provas não há como punir.”
  • O Judiciário também legisla – as decisões de Justiça terminam por gerar novas normas e regras que atingem direta e indistintamente a todos. “Este problemas se avolumam dia-a-dia, gerando verdadeiro caos, um espectro de nossa insegurança jurídica.”

A qualidade das leis

  • Pesquisa revela que, entre 2002 e 2003, 82% das leis municipais de São Paulo levadas ao Tribunal de Justiça de São Paulo foram por ele consideradas inconstitucionais. Metade das leis estaduais e quase 20% das federais também. Após longos processos judiciais, leis são derrubadas. “Acontece que nossa vida foi calcada em cima daquelas regras. Ficamos com uma projeção existencial e negocial alicerçada em normas que não existem mais.”
  • O Judiciário fornece decisões diferentes para o mesmo tema nas várias cortes do País. “Ninguém consegue entender o que vale como regra. Cada tribunal fala uma língua, graças à baixa qualidade da legislação feita no País.”
  • A culpa é do legislador? “Na verdade, é de quem o elegeu (nós). A democracia comporta o pipoqueiro candidato. Ele faz uma ótima pipoca, mas dificilmente terá o mesmo talento para fazer leis – e é eleito para isso. O resultado está aí. Para mudar, só participando, reagindo, interferindo, propostas estas do NAT.”

A quantidade das leis

  • Este é outro viés da insegurança jurídica. A primeira censura a ser feita é o tamanho da Constituição. “Nem os técnicos mais competentes conhecem o seu teor. Que dirá então da população. Isso se constitui em insegurança jurídica para toda a sociedade.”
  • A impossibilidade de conhecer a lei maior deságua noutra balbúrdia: cada vez mais as formas de interpretação convergem para o chamado ‘Estado Policial’. “Este é a ante-sala do Estado Totalitário, que ocorre sempre que os limites constitucionais não são observados. Há a subversão de valores.”

“Prende-e-solta”

  • A possibilidade de múltiplas interpretações (oriundas da quantidade de leis e tamanho da Constituição desproporcionais) agrava a percepção da coletividade quanto à aplicação e ao cumprimento de penas. “O caso Opportunity evidencia isto. O ministro Gilmar Mendes se opôs a decisões de juízes. Diariamente, a corte superior revoga decisões de primeira instância. Na questão mencionada, o hábeas corpus preventivo já estava lá. Era necessário respeitar isso.”
  • É preciso entender que para tudo há uma explicação “Aliás, o artigo do companheiro do NAT José Renato Nalini publicado hoje (‘A Sanção Eficaz’, O Estado de S. Paulo) merece os parabéns. Há que se adaptar nossa legislação, pois o viés da punição sempre repousa na cadeia. Vivemos o ‘Estado Penal’. A algema é o símbolo – razão pela qual condeno seu uso exacerbado. Ela foi feita para imobilizar aquele que resiste à ordem.”
  • A Constituição prevê privação de liberdade somente após a sentença condenatória definitiva. “Até lá, vale o princípio de presunção de inocência. A cadeia pode acontecer por exceção à regra, mas não tem nada a ver com culpa.”

Pirotecnia midiática

  • É preciso estar atento à proximidade entre a polícia, o Ministério Público e à presença nociva da imprensa. “Busca-se quem quer que seja com ordem judicial que não observa as regras. A prisão temporária só pode ocorrer quando imprescindível. Fora das devidas condições, é ilegal.”
  • Não raro, e com ampla cobertura da imprensa, pessoas são presas para ser ouvidas e depois são liberadas. Começa o show, ou a pirotecnia midiática. “Ser algemado e ir preso é apenas o pano de fundo do que o cidadão vai sofrer. Há o linchamento moral, a execração pública. Vidas são destruídas, como ocorreu com os proprietários da Escola Base – foram aniquilados e depois inocentados.”
  • Difundiu-se a idéia de que ‘rico agora vai para a cadeia’. “Também o Zé da Silva é ferido em suas garantias individuais, mas a mídia não mostra isso. Não reagimos contra a imprensa, mas contra o ato de ilegalidade que mutila o estado democrático de direito, como se vê na invasão de escritórios de advocacia para colocar escutas. É o mesmo que colocar escutas no confessionário.”

Defesa da Constituição

  • O Brasil padece com a subversão de valores que, não raro, resulta em abuso de autoridade. “Toda vez que defendemos a Constituição dizem que defendemos a impunidade. A população é levada a erro pelos veículos de comunicação, que servem de palco para essas distorções.”
  • A segurança jurídica repousa na certeza da punição ao culpado, o que só ocorre com investigação séria, “não com CPIs midiáticas que pisoteiam a leis e transformam o Brasil em terra de ninguém.”

O que é preciso

  • O Brasil necessita de regras firmes, que só se modifiquem pela vontade da sociedade. “Não se pode estabelecer como uma sociedade vai viver pela lei, mas sim ao contrário.”
  • Tudo pode ser melhorado e consertado se o balizamento for feito pela própria Carta Magna. “O respeito aos princípios constitucionais é a base da democracia. O retorno a esses primados permitirá melhores condições de harmonia entre a vida e as leis.”
  • Historicamente, a OAB é uma trincheira conta exageros. “Podemos errar, mas nunca teremos a pecha da omissão.”

Sinceridade

  • “Falei a todos com muita sinceridade. Esta é uma palavra muito especial. Vem da Itália, da época em que os artistas esculpiam em mármore e, diante de um talho impreciso, faziam a correção com parafina ou cera. Portanto, existiam dois tipos de obras: as com parafina e as sem cera – sincera.”

Debates
“INSEGURA A JURISPRUDÊNCIA, INSTAURA-SE A INSEGURANÇA JURÍDICA” – ao considerar que o STF defende a constituição e o STJ defende e estabelece um norte para a legalidade, o jurista e professor Ney Prado, ex-secretário-geral da Comissão de Estudos Constitucionais, fez a leitura de trecho do discurso do ministro do Superior Tribunal da Justiça, Humberto Gomes de Barros:
“… Criado para funcionar como instância excepcional, o Tribunal da Federação desviou-se. Passou a dedicar mais da metade de sua atividade ao trato de agravos de instrumento – apelos indiscutivelmente ordinário… O exagerado número de feitos intensificou a freqüência de julgamentos, aumentando a possibilidade de erros, tornando insegura a jurisprudência… Instaura-se a insegurança jurídica. Sem conhecer a correta e segura interpretação dos enunciados jurídicos, o cidadão queda-se no limbo da insegurança.
…o Superior Tribunal de Justiça deixa de ser o intérprete máximo e definitivo do direito federal… Preso a infernal dilema, vê-se na iminência de fazer uma de duas opções:
a) consolidar-se como líder e fiador da segurança jurídica, ou
b) transformar-se em reles terceira instância, com a única serventia de alongar o curso dos processos e dificultar ainda mais a prestação jurisdicional.
… Para fugir de tal aviltante destino, o STJ adotou a denominada ‘jurisprudência defensiva’, consistente na criação de entraves e pretextos para impedir a chegada e o conhecimento dos recursos que lhes são dirigidos. Outro artifício é a utilização da informática no exame e julgamento de processos… Criou-se o juiz eletrônico.”

ÁREAS INDÍGENAS – Leôncio de Souza Britto Filho, Comissão Nacional de Assuntos Fundiários da CNA (Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil), destacou a gravidade do Decreto 1771/96, referente à destinação de áreas indígenas. Com base nesse decreto, estão ocorrendo graves problemas no Mato Grosso e em Roraima, “situação ainda mais grave que a relativa à questão dos quilombolas. A insegurança jurídica na área fundiária é tremenda. Há a relativização do direito de propriedade, condição agravada. Portarias da Funai, somadas a outras medidas referentes à reforma agrária estão engessando milhões de hectares e criando uma nação guarani dentro do Brasil. Será que o País vai suportar isso?”

Sobre a manifestação de Ney Prado, D’Urso considerou ser preocupante o julgamento em massa – “Não é justiça, é limpar prateleira. Precisamos reverter, começando por impedir que o processo comece, o que só será possível com o uso da mediação e da arbitragem, temas que deveriam estar no currículo das faculdades de Direito, de forma a ensinar os bacharéis a negociar. Já a informatização é importante, porém é preciso cuidados. Um exemplo é a penhora on-line. Antes, o juiz mandava ofício para o Banco Central que bloqueava. Hoje, o juiz tem a senha e entra na sua conta. Não raro, quem faz isso é um assessor e o juiz nem fica sabendo… Nos EUA, 85% das questões criminais são resolvidas por acordo – e isso não é impunidade, é cadeia para o criminoso.”

Sobre a questão levantada por Leôncio Britto, lembrou que Alencar Burti (presidente da ACSP) promovera recentemente debate sobre a questão da Amazônia, onde o problema também se apresenta. “Sem que percebamos, o governo brasileiro aderiu ao tratado internacional segundo o qual terra indígena tem autogoverno. Se fossem alguns quarteirões, tudo bem. Mas são áreas imensas na maioria dos estados brasileiros e em zonas estratégicas (fronteiras). Áreas riquíssimas em fauna, flora e minérios, e o Brasil abre mão de sua soberania nesses espaços. Daí apelamos ao Parlamento para que não homologue tal proposta. Teremos uma nação dentro do Brasil onde nem o poder militar poderá interferir. Uma excrescência.”

LEGISLAR POR DECRETO – sobre a questão agrária, o professor e filósofo Denis Rosenfield pontuou a tendência do Executivo em legislar por decretos, instruções normativas e portarias. “O Incra determina que a Vale do Rio Doce não respeita o meio ambiente e não o Ibama, como seria de se esperar. Tais normas cercam os brasileiros, cujas vidas são hoje determinadas por funcionários do quinto escalão”. “Vejam o que está acontecendo com o projeto de Eike Batista – um novo porto”, completou Ney Prado.
D’Urso afirmou que há uma inversão da hierarquia: “Há órgãos com relevo superior ao que estabelece a Constituição. Isso também ocorre quando um ou outro promotor resolve ver apenas o galho da árvore ao invés de um projeto de interesse público. Por isso não concordamos que o MP investigue. Isso cabe à polícia que, fiscalizada por ele, apura e encaminha para o juiz decidir. Com essa divisão de tarefas respeitada, o sistema funciona.”

Silvia Carneiro
Assessora de Assuntos Institucionais/Secovi-SP

Galeria de Fotos